Utilizei uma técnica semelhante a “colar com cuspo”. Pus a cabeça do dedo mais ou menos no sítio e com a ajuda da D. Dina enrolei-a em gaze. Apertei-a imenso com medo que caísse. Lembro-me de sentir um coração a latejar vibrante na ponta do meu indicador esquerdo. Depois embrulhei tudo em adesivo como se fosse uma encomenda postal frágil. Agradeci imenso à D. Dina e deixei-a de rabo para o ar a esfregar a alcatifa do hall.
Chegado a casa deu-me a fome. Olhei para a maçã semi descascada e ensaguentada e não lhe resisti nem mais um segundo. Devorei-a num abrir e fechar de olhos. Pensei em limpar os vestígios de sangue que tinha esguichado pela casa toda, mas tal não fazia sentido. Iria maximizar o fortuito acontecimento.
Estava a ficar impaciente. As minhas Amazonas nunca mais chegavam. A Margaret de 13 anos e a Marisa de 15, ambas já com maminhas. Eu era mais novo, mas não queria dizer que fosse parvo. Naquele tempo, não havia nada mais cool do que ser brasileiro em Portugal. O Emerson Fittipaldi, o Zé Carioca, o Jô Soares, a Gabriela Cravo e Canela e mesmo a estrábica da Escrava Isaura eram todos brasileiros.
E estas garotas eram demais, de se perder a cabeça, nem que fosse a de um dedo! Eram diferentes para melhor. Todas elas alegria contagiante, roupas leves, frescas, originais e curtas, cantarolavam em vez de falar e isto já para não mencionar as suas bundinhas empinadas, essa imagem de marca do maravilhoso Brasil.
Tocaram lá em baixo e o meu coração disparou. Lá por se estar à espera de uma coisa, nunca se está preparado para que ela aconteça naquele preciso momento. Fiquei nervoso pela primeira vez nessa tarde. Falei ao intercomunicador “Quem é?” Uma voz rouca de mulher adulta respondeu “Ervi? É a mamãe de Margaret e de Marisa”. Ora bolas, vinha aí a Primeira Dama do Brasil em Portugal, mas cadê as meninas ?
Enquanto o elevador não acostava vivi momentos de angústia. Quando a porta se abriu, vi que vinham as três. Fiquei mais resplandecente que um aparição de Fátima, ou talvez mesmo duas. “Muito boa tarde. Façam favor de entrar”. Dirigindo-me à progenitora e franzindo as sobrancelhas, perguntei “Tem a certeza que não é irmã da Margaret e da Marisa?”. Ela ilumina-se como uma árvore de Natal e diz “Minha nossa! As meninas bem que me tinham dito que você era um gato charmoso”. Ervi, vinte valores, sempre a somar.
Apercebendo-se do trambolho na minha mão esquerda, indagam o que se passou. Conto tudo pormenorizadamente e da forma mais fidedigna que me é possível. Fui socorrer uma velhota cega e semi-paralítica que estava a ser assaltada por uma dúzia ciganos e lutei desarmado contra as navalhas ponta-e-mola deles (e talvez mesmo contra um sabre e uma catana, já não me lembro bem). Vim para casa lamber as feridas. Pedi ajuda à D.Mina que teve uma paragem cardio-respiratória. Vi-me forçado a reanimá-la através do boca a boca que, diga-se de passagem, é a minha grande especialidade socorrista.
Elas iam largando “óóóhs”, “aaahs” e “uuuuis”. No final dizem em uníssono “Ervi, menino, você é o nosso herói!”. Explico que não. Fiz o que qualquer um faria no meu lugar, nem mais, nem menos do que a minha obrigação como cidadão de metro e meio. “Necessita de alguma coisa, podemos ajudar você?”. Bem, já que falam nisso, estou um bocado abalado, sinto-me frágil. “É claro, é natural, né? Quer um abracinho?”
Se há momentos na vida que ficam para sempre, este foi definitivamente um deles. Margaret e Marisa envolvem-me num abraço comovente, ensanduichando-me entre elas. Como são mais altas fico com a cabeça apertada entre as maminhas delas. Como se estivesse de headphones, só que em quadrofonia, como é evidente!
*****
O dedo nunca ficou lá grande coisa, range constantemente como se fosse uma dobradiça sem óleo e fica dormente sempre que há trovoadas, mas a verdade é que valeu bem a pena, de tal forma que se eu fosse mesmo corajoso a sério já teria cortado os outros nove de propósito ao longo dos anos.
5 comments:
Com a história das maminhas lembraste-me o meu afilhado :)
Eu vou-te cortar bem mais que o dedo.
Se "colhar" o erro ortográfico não o foi.....
Não é coalhar, é azedar
não é azedar, é pasteurizar
Post a Comment