Tinha-me esquecido por completo que o Verão existia. O trabalho sobrecarregava-me de tal forma que nem tinha tempo para pensar. Para dizer a verdade eu é que me agarrava ao trabalho como se ele fosse a saia plissada de xadrez escocês da minha mãe, de outro tempo em que mãe era materna e não precisava de ser moderna.
Talvez fosse melhor assim, também não era altura para estar a fazer grandes planos ou a tomar decisões irreversíveis. Todos os dias do trabalho para casa e de casa para o trabalho, o mundo afunila e vive-se numa estado alienado que por muito que não seja salutar, sempre impede uma doença incapacitante de se instalar. Com sorte. E já era altura de ela me bafejar de novo. Pelo sim, pelo não, vou esperar sentada.
Nem tinha forças para ver televisão, mal encostava a qualquer sítio adormecia de imediato, mesmo que estivesse de pé. Dormir, desde que não se sonhe, é uma benção. O maravilhoso sistema de reboot humano, um sair e voltar a entrar na esperança que tudo vá melhorar.
Às vezes sobreviver é mais fácil do que viver. Concentramo-nos nas coisas básicas como comer, dormir, ganhar sustento. Tarefas quotidianas, repetitivas, mecânicas são as mais simples, aquelas que não é preciso questionar nunca e sem as quais a vida cessa. Agora é para ir tomar banho, agora escolher a roupa, vá lá, tu consegues, agora tenho que sair da porta para fora, isso, muito bem, com um pé de cada vez a ignorar os porquês.
Ela tinha-se ido há mais de seis meses, quase de forma tão rápida como quando apareceu feita furacão Catarina e mudou a minha vida para sempre. Eu nunca havia chorado, nem uma lágrima orfã, nem gotícula desemparelhada, nem nada de nada.
Gastava muita da pouca energia que tinha a evitar os outros. Antes dela, num outrora longínquo, alguns desses outros eram importantes e próximos, mas não mais. Aqui estou só eu, isto é um poço de um só lugar, não dá para vir à pendura. Nada perdura, o tempo dá cabo de tudo, tão certo, tão regular, tão tic, tão tac.
Daí a surpresa de dar pelo Verão. Desejar o sol no peito, a areia no dorso e os sons, que só o mar sabe fazer, a cantarem-me ao ouvido. E um Epá da Olá com pastilha de plástico e colher de elástico e sabor a prefácio seria fantástico.
A logística é aterradora. O fato de banho serve? Há fila na ponte? Levo chapéu? Cadeira? Farnel? Jesus, teria de me depilar primeiro! Já não quero nada, vou dormir sossegada, longe da manada, na manta enrolada. Posição fetal assumida, almofada entre coxas prendida, sem saudade de ser fodida e o mundo lá fora com bilhete só de ida.
A visão do Epá na praia persegue-me como um síndrome de abstinência. Atormenta-me as tormentas. Vou ter de dobrar este cabo. Enfrentar o Adamastor. Ligo para o cabeleireiro. Perna inteira, virilhas, linha alba, axilas, outras partes que tais, que nunca são demais.
O laser não dói como eu recordava. São meras cócegas em mulher brava. A senhora da bata falava e falava. No final sorriu, fez-me uma festinha premente na minha face ausente e disse: “A menina é uma valente!”
No dia seguinte o Epá fez-me sossegar ou pode ter sido o mar a ver a minha vida a passar ou toda aquela areia fugida das ampulhetas do tempo que me deu o alento para finalmente chorar de encontro ao vento e de marcar o momento em que basta é chegar. Já chega. Vou pedir ajuda.
Débora F.
Grafismo e Edição de Ervilha Albina
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