Sunday, August 26, 2007

A Carolina


A Carolina nunca usava saias. O vento frio a aventurar-se pelas suas esguias pernas acima não justificava tudo.O porquê estava guardado em gavetas de madeira empenadas, há muito talhadas, há muito desusadas. A chave perdida ou somente esquecida quem sabe deslocada certamente enferrujada.

Eram memórias difusas, imagens confusas, eventos não recordados amordaçados por sentimentos recalcados. Confabulações, talvez. Mas coisas houve que aconteceram e para sempre mudaram a indumentária de Carolina.

Carolina é um bicho do mato. Não olha nos olhos. Tem medo que vejam logo o que ela tenta esconder, o que ela sabe saber. Em pequena acreditava que as pessoas dentro da televisão também a conseguiriam ver. A televisão era o seu papão, a privacidade uma ilusão.

Nunca teve um porto seguro, um local de bom “auguro”. O medo que a tolhe, coisa que não escolhe, vem do extremo da raíz, de quando era petiz. Que sonhar não há pior, ser banhada em suor, estremunhada do terror nas madrugadas devolutas de amor.

Carolina não conhece diferente, nunca ninguém a tratou como gente. Para ela é-lhe igual, até pensa ser banal. Vale-lhe gostar de dançar, rodopiar em pirueta no ar, sem vivalma a observar.

A Carolina das calças tem sorte em não saber a sorte que não tem, que não teve e que, provavelmente, nuca terá.

A Carolina nunca usa saia.

1 comment:

Anonymous said...

Estou com dificuldade em descrever o que senti ao ler este texto.É "intimista", ternurento, poético e "aterrorizador". A Carolina "pede-me" para a abraçar,embalar, mas ao mesmo tempo deixá-la crescer sem deixar de a proteger.

Traz-me ao pensamento, tantas Carolinas que desconhecem a esperança e a alegria duma VIDA a que todos têm direito.

EXCELENTE!