A minha avó Catarina tem oitenta e seis anos. Depois de uma existência quase toda vivida numa grande cidade decidiu ir passar o seu Outono, como ela chama, para o campo. É uma mulher dura, mas justa e rija até mais não. Pequena, com pouco mais de metro e meio, seca e com uma farta cabeleira branca, já fui dar com ela a cortar lenha para a lareira à machadada quando apareci de surpresa para a visitar.
Não sendo uma mulher retrógrada e conservadora, há muitas coisas no mundo moderno com as quais não consegue lidar e prefere ignorá-las ou ter uma atitude de “burra velha nunca apende”. Desde que o meu avô morreu, já vai para trinta anos, nunca mais quis outro homem. Nem namorado, nem amigo, nem jardineiro, nem cavalheiro de companhia. Acredita que casar é só para se experimentar uma vez. Veste-se sempre de preto numa postura que já tem muito mais de ritual do que de crença religiosa e não se conforma de eu nunca ter tido um homem, nem de não lhe ter dado um bisneto.
Apesar disto, somos uvas da mesma vinha. É provável que da mesma videira. Sempre existiu uma cumplicidade silenciosa entre nós, uma certeza de sermos a preferida uma da outra e um amor verdadeiro desapossado de interesses ulteriores. Nenhuma de nós é muito faladora mas também não é necessário. O excesso de palavras mata, enche, oprime.
Por isso quando há conversas sobre assuntos importantes é rara a ocasião em que não sejam memoráveis. Lembro-me de ela me explicar que tinha muita pena de nunca ter convencido o meu avô a fazer-lhe sexo oral. Já não sei que palavras utilizou para expressar tão inesperado “arrependimento”. Provavelmente foram termos que já nem se usam do género de “a demasia”, o “freguês” ou o “guarda-freio”, mas o importante é que me transmitiu a ideia com clareza. Recordo-me de sentir um ternura arrebatadora por aquela mulher, sem qualquer tipo de desconforto ou falso pudor.
Houve vezes sem conta em que nos desentendemos: a minha orientação sexual (“Se experimentares vais ver que isso te passa”), as minhas depressões cíclicas (“Se soubesses como a vida era dura, se tivesses passado fome, curavas-te de imediato”), a minha escolha em recorrer à inseminação artificial um dia no futuro (“Ah, disparates, modernices..”) e até mesmo a velocidade a que eu conduzo (“Mais vale perder um minuto na vida, que a vida num minuto”).
A nossa maior zanga teve a ver com ela insistir em chamar ao Paulo “o meu noivo”. Expliquei-lhe vezes sem conta, que não era assim, que era uma infantilidade da parte dela, que pelo facto de se desejar muito uma coisa não se tem o direito de massacrar os outros até à exaustão. Chegou a um ponto em que fui má e lhe disse que podia gastar a pensão toda em velas e, enfim, fazer com elas coisas à imagem da Nossa Senhora que não iria acontecer nada entre mim e ele, eu amava-o mas nunca dessa maneira. Não me orgulho nada desse momento, foi a única vez que perdi as estribeiras com ela, mas aconteceu e ela lá parou com aquilo.
O Paulo, esse, regozijava com a situação. Sempre que a via dizia “Ó avó Catarina, tem de falar com a sua neta, eu já lhe dei flores, chocolates, roupas, brincos, levei-a a jantar, ao cinema, á praia, e nada. Já não sei o que fazer” ou então “Vocês parecem mesmo irmãs, a avó Catarina tem a certeza que não precisa de um namorado?”. Ainda me tentei zangar com ele, mas foi em vão. Eu sei que sou suspeita para falar dele, do meu par de muletas humano, mas tal como a Avó o Paulo é uma força da natureza, ainda por cima mais novo e cheio de testosterona.
A muito custo convenceu-me a deixar-me de parvoíces e experimentar a Internet. Fi-lo e gostei. E conheci alguém promissor pela primeira vez em muito tempo. Ando tão entusiasmada que quase não perdi tempo nenhum a remoer porque sou tão teimosa e estúpida. Quase. O que me vale, é qualquer um deles ter o poder de me reduzir à minha insignificâcia quando eu o mereço, mesmo que seja de forma involuntária.
Foi exactamente isso que aconteceu este fim-de-semana. Fui visitá-la com uma boa disposição fora do normal. Comecei por dizer-lhe que me sentia bem, que tinha conhecido alguém novo, que era bom estar viva. Ela absorveu as minhas palavras com uma satisfação calma e contida, própria de quem já viu tudo o que havia para ver e perguntou-me “Onde é que conheceste essa rapariga, Débora?”. Respondo “Na internet avó” ao que ela retorque “Isso fica ali perto da Malveira, não é?”...
Débora F.
Cara N. este é-lhe dedicado a si, o que é completamente distinto de ser sobre si
3 comments:
Boa Débora!Uma ficção que descreve gerações que se respeitam e amam mostra que, no seu incosciente, não renega a sua família.Por muito que queiramos esconder os nossos sentimentos eles duma maneira ou doutra, emergem sem darmos por tal Parabéns Débora, continue a colaborar com o ervilha que enriquece o blogue dele.
Querida D. Não esperava que tivesses coragem para revelares o nosso amor.AMO-TE!
I miss your love wrote:
Com tantas (pea)rsonalidades já pareces o Fernado (pea)ssoa.
&
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