Monday, August 6, 2007

Magoito - David


Magoito, Tojeira, Bolembre e Arneiro. As quatro aldeias que formam o clube desportivo M.T.B.A. Foi naquele campo de futebol de 11 que vi os Xutos & Pontapés ao vivo pela primeira de muitas vezes. A meio da segunda música o gerador foi para o galheiro e durante largos minutos parecia que o concerto iria ser cancelado. Desesperado, gritei para o palco: "Toquem mesmo assim, que nós não fazemos barulho!". Dito e feito, foi mesmo à luz da vela, com mil e quinhentas almas em silêncio absoluto, como se de um concerto de música erudita se tratasse e com o Tim a dar tudo por tudo para que a sua voz sem aplificação chegasse até à outra grande área. Quanto a mim, tinha acabado de inventar o conceito contemporâneo de Unplugged . Não registei a patente, mas nunca me arrependi. O dinheiro sempre me trouxe problemas e, de qualquer forma, não haveria suficiente no mundo para (a)pagar a memória daqueles momentos.

Foi também naquele rectângulo pelado mágico que me transfigurei de homem em homem de barba rija. Jogar contra assassinos profissionais federados, veteranos da 3ª Divisão Nacional e da 1ª Distrital de Lisboa, e sobreviver, não é pêra doce. Duros, intratáveis e com afeição especial por jovens emergentes com sangue na guelra como eu. Especialmente como eu, um rato de área cerebral, traiçoeiro, oportunista, frio e pior que isso, citadino, educado e com fair-play.

No jogo decisivo para a atribuição do primeiro lugar partíamos em desvantagem. Ao adversário bastava-lhe o empate. Nem dormi muito bem na noite anterior ao encontro pois sabia que iria ser marcado, homem a homem, pelo Goikoetxea. Nunca soube o seu nome verdadeiro mas a alcunha assentava-lhe que nem uma luva pois o Goikoetxea original era o basco que de forma selvática havia partido a perna ao Maradona. Este meu antagonista não lhe ficava atrás, antes pelo contrário. No seu currículo tinha duas pernas, dois traumatismos cranianos e três narizes. Tinha em duas ocasiões, durante a sua já longa carreira, sido o jogador mais violento de todas as divisões nacionais e detinha o recorde absoluto de cartões vermelhos numa só época, nada mais, nada menos que oito.

Logo no primeiro minuto de jogo recebo a bola junto à linha lateral e quando me preparo para rodopiar em direcção ao meio campo adversário sou ceifado com uma violência inusitada. Entrada, por trás, a pés juntos, mesmo à “f da p”, a rasgar tecido de forma não figurativa. Admoestação verbal do franzino árbitro a que Goikoetxea confidencia com uma honestidade brutal “Sôr árbitro, hoje o puto tá fodido, vai sair em maca”. Depois de ser pulverizado com um daqueles sprays milagrosos que cheiravam a Raid Casa e Plantas (na altura tinhamos de os ir comprar a Badajoz), regresso às quatro linhas a coxear, enquanto o Mister me grita “Mendel, não desanima, pra cima deles, pra cima deles!”

Na primeira parte não toquei mais bola. Para compensar, o Goikoetxea “tocou-me” em quatro ocasiões, com destaque para uma apertadela de tomates na confusão da área durante a marcação de um pontapé de canto e para uma cotovelada à “paulinho santos” que me abriu o sobrolho direito. Ao intervalo perdíamos por um a zero. Livre directo com o a bola a desviar na barreira e a trair, sem apelo, o nosso guardião, o castiço Mário da Terrugem.

No balneário delineámos uma nova estratégia para a segunda metade. Eu deveria vir buscar jogo mais atrás de forma a atrair o Goikoetxea para o nosso meio campo e de seguida, como era muito mais rápido, lançar-me num contra ataque fulgurante. Basicamente, eu fazia de isco, ele era o tubarão.

Aos 72 minutos, o nosso plano deu frutos. Vi os pitons em riste, do distribuidor de fruta mor, a aproximarem-se vertiginosamente, mas consegui evitá-los e tabelar com o Quim Zé que me desmarcou de forma prodigiosa sobre a meia direita. Enquanto corria desalmadamente em direcção à baliza contrária ainda o ouvi gritar para o outro defesa central “afinfa nesse cabrão”, mas era tarde demais. À saída do guarda-redes contrário piquei-lhe a bola por cima e repus a igualdade no marcador.

Nunca comemorava os golos. Achava má educação para com os adversários. Não me importava que os meus companheiros o fizessem e inclusive me saltassem para cima, puxassem o cabelo, me dessem caldos e palmadas no rabo e gritassem que nem loucos possuídos pelo demónio. Eu não o fazia, assim como não me queixava das faltas que sofria, nunca falava com adversários e muito menos com os árbitros. Era exemplar.

Nos minutos que se seguiram houve muito pouco futebol, muitas faltas e muitos jogadores adversários a rebolarem pelo chão como se tivessem sido atropelados por uma retro-escavadora. O resultado servia-lhes, a nós não. No primeiro minuto dos descontos, canto a nosso favor. Os meus dois defesas centrais tentam em vão blocar a marcação que Goikoetxea exerce sobre mim, mas nada feito. O tipo é uma lapa, agarra, puxa e, às vezes, até cospe. Tem um cabedal tão impressionante, estampa física como agora se diz, que se fosse forcado os toiros fugiam dele. Tenho a certeza.

O canto é marcado mas o árbitro apita e manda repetir, pois a pouca vergonha de puxões, empurrões e agarranços é demais até mesmo para ele. Quando consigo soltar-me da gravata que me imobilizava, viro-me para o meu Némesis e digo: “Goikoetxea!”. Ele fica pasmado, boquiaberto de me ouvir proferir palavra e responde “Sim?”. Eu sorrio de forma irreverente e sacrifico-me pela equipa: “A tua mãe faz um grande bóbó!”

Acordo no balneário com o meu pai, o massagista Roldão e o Mister a olharem para mim com preocupação. “O que aconteceu, ganhámos?” Explicam-me que levei um soco certeiro do Mike Tyson Sintrense e que perdi os sentidos e dois dentes. Sururu gigantesco, jogo interrompido durante vários minutos, Goikoetxea expulso, grande penalidade a nosso favor convertida à “Panenka” pelo Quim Zé, bola ao centro, final da partida. Éramos campeões!

*****

Não sinto particular orgulho no que fiz, mas fi-lo pelos meus companheiros de equipa e voltaria a fazê-lo hoje. Brilham-me os olhos sempre que entro bienalmente, ou coisa que o valha, no Café Clementina e vejo a foto da nossa equipa na parede. Sou uma lenda viva naquela terra, podia até ser Nobel da Paz que para aquela gente continuaria eternamente a ser o Mendel David que numa tarde quente de Julho derrotou o Goikoetxea Golias com mestria e arte. Ainda hoje, este facto, traz-me um conforto e uma paz de espírito que eu não consigo explicar.

5 comments:

Anonymous said...

muitos parabéns, esta foi de ir ás lágrimas, agora que escrevo esta mensagem aínda me estou a rir. Continua nem que seja eu o teu unico leitor comentador (mas pouco)
um GRANDE ABRAÇO

Ervi Mendel said...

CBA(CPNR),
Há mais, mas são tímidos!
Tem de se dar tempo ao tempo.
Ervi

Anonymous said...

A infância deixa muitas marcas.Ainda bem que a tua alimenta o teu imaginário duma forma tão enriquecedora. Continua!Estás num óptimo caminho.Beijos!

Unknown said...
This comment has been removed by the author.
Unknown said...

Fiquei siderada. Nunca mais passo pelo campo do MTBA sem me lembrar deste episódio épico. Falta ir à Clementina (passo o termo) para ver (bem visto) a foto heróica. Mendel David, volta a escrever! ;)