Magoito, Tojeira, Bolembre e Arneiro. As quatro aldeias que formam o clube desportivo M.T.B.A. Foi naquele campo de futebol de 11 que vi os Xutos & Pontapés ao vivo pela primeira de muitas vezes. A meio da segunda música o gerador foi para o galheiro e durante largos minutos parecia que o concerto iria ser cancelado. Desesperado, gritei para o palco: "Toquem mesmo assim, que nós não fazemos barulho!". Dito e feito, foi mesmo à luz da vela, com mil e quinhentas almas em silêncio absoluto, como se de um concerto de música erudita se tratasse e com o Tim a dar tudo por tudo para que a sua voz sem aplificação chegasse até à outra grande área. Quanto a mim, tinha acabado de inventar o conceito contemporâneo de Unplugged . Não registei a patente, mas nunca me arrependi. O dinheiro sempre me trouxe problemas e, de qualquer forma, não haveria suficiente no mundo para (a)pagar a memória daqueles momentos.
Foi também naquele rectângulo pelado mágico que me transfigurei de homem em homem de barba rija. Jogar contra assassinos profissionais federados, veteranos da 3ª Divisão Nacional e da 1ª Distrital de Lisboa, e sobreviver, não é pêra doce. Duros, intratáveis e com afeição especial por jovens emergentes com sangue na guelra como eu. Especialmente como eu, um rato de área cerebral, traiçoeiro, oportunista, frio e pior que isso, citadino, educado e com fair-play.
No jogo decisivo para a atribuição do primeiro lugar partíamos em desvantagem. Ao adversário bastava-lhe o empate. Nem dormi muito bem na noite anterior ao encontro pois sabia que iria ser marcado, homem a homem, pelo Goikoetxea. Nunca soube o seu nome verdadeiro mas a alcunha assentava-lhe que nem uma luva pois o Goikoetxea original era o basco que de forma selvática havia partido a perna ao Maradona. Este meu antagonista não lhe ficava atrás, antes pelo contrário. No seu currículo tinha duas pernas, dois traumatismos cranianos e três narizes. Tinha em duas ocasiões, durante a sua já longa carreira, sido o jogador mais violento de todas as divisões nacionais e detinha o recorde absoluto de cartões vermelhos numa só época, nada mais, nada menos que oito.
Logo no primeiro minuto de jogo recebo a bola junto à linha lateral e quando me preparo para rodopiar em direcção ao meio campo adversário sou ceifado com uma violência inusitada. Entrada, por trás, a pés juntos, mesmo à “f da p”, a rasgar tecido de forma não figurativa. Admoestação verbal do franzino árbitro a que Goikoetxea confidencia com uma honestidade brutal “Sôr árbitro, hoje o puto tá fodido, vai sair em maca”. Depois de ser pulverizado com um daqueles sprays milagrosos que cheiravam a Raid Casa e Plantas (na altura tinhamos de os ir comprar a Badajoz), regresso às quatro linhas a coxear, enquanto o Mister me grita “Mendel, não desanima, pra cima deles, pra cima deles!”
Na primeira parte não toquei mais bola. Para compensar, o Goikoetxea “tocou-me” em quatro ocasiões, com destaque para uma apertadela de tomates na confusão da área durante a marcação de um pontapé de canto e para uma cotovelada à “paulinho santos” que me abriu o sobrolho direito. Ao intervalo perdíamos por um a zero. Livre directo com o a bola a desviar na barreira e a trair, sem apelo, o nosso guardião, o castiço Mário da Terrugem.
No balneário delineámos uma nova estratégia para a segunda metade. Eu deveria vir buscar jogo mais atrás de forma a atrair o Goikoetxea para o nosso meio campo e de seguida, como era muito mais rápido, lançar-me num contra ataque fulgurante. Basicamente, eu fazia de isco, ele era o tubarão.
Aos 72 minutos, o nosso plano deu frutos. Vi os pitons em riste, do distribuidor de fruta mor, a aproximarem-se vertiginosamente, mas consegui evitá-los e tabelar com o Quim Zé que me desmarcou de forma prodigiosa sobre a meia direita. Enquanto corria desalmadamente em direcção à baliza contrária ainda o ouvi gritar para o outro defesa central “afinfa nesse cabrão”, mas era tarde demais. À saída do guarda-redes contrário piquei-lhe a bola por cima e repus a igualdade no marcador.
Nunca comemorava os golos. Achava má educação para com os adversários. Não me importava que os meus companheiros o fizessem e inclusive me saltassem para cima, puxassem o cabelo, me dessem caldos e palmadas no rabo e gritassem que nem loucos possuídos pelo demónio. Eu não o fazia, assim como não me queixava das faltas que sofria, nunca falava com adversários e muito menos com os árbitros. Era exemplar.
Nos minutos que se seguiram houve muito pouco futebol, muitas faltas e muitos jogadores adversários a rebolarem pelo chão como se tivessem sido atropelados por uma retro-escavadora. O resultado servia-lhes, a nós não. No primeiro minuto dos descontos, canto a nosso favor. Os meus dois defesas centrais tentam em vão blocar a marcação que Goikoetxea exerce sobre mim, mas nada feito. O tipo é uma lapa, agarra, puxa e, às vezes, até cospe. Tem um cabedal tão impressionante, estampa física como agora se diz, que se fosse forcado os toiros fugiam dele. Tenho a certeza.
O canto é marcado mas o árbitro apita e manda repetir, pois a pouca vergonha de puxões, empurrões e agarranços é demais até mesmo para ele. Quando consigo soltar-me da gravata que me imobilizava, viro-me para o meu Némesis e digo: “Goikoetxea!”. Ele fica pasmado, boquiaberto de me ouvir proferir palavra e responde “Sim?”. Eu sorrio de forma irreverente e sacrifico-me pela equipa: “A tua mãe faz um grande bóbó!”
Acordo no balneário com o meu pai, o massagista Roldão e o Mister a olharem para mim com preocupação. “O que aconteceu, ganhámos?” Explicam-me que levei um soco certeiro do Mike Tyson Sintrense e que perdi os sentidos e dois dentes. Sururu gigantesco, jogo interrompido durante vários minutos, Goikoetxea expulso, grande penalidade a nosso favor convertida à “Panenka” pelo Quim Zé, bola ao centro, final da partida. Éramos campeões!
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Não sinto particular orgulho no que fiz, mas fi-lo pelos meus companheiros de equipa e voltaria a fazê-lo hoje. Brilham-me os olhos sempre que entro bienalmente, ou coisa que o valha, no Café Clementina e vejo a foto da nossa equipa na parede. Sou uma lenda viva naquela terra, podia até ser Nobel da Paz que para aquela gente continuaria eternamente a ser o Mendel David que numa tarde quente de Julho derrotou o Goikoetxea Golias com mestria e arte. Ainda hoje, este facto, traz-me um conforto e uma paz de espírito que eu não consigo explicar.
5 comments:
muitos parabéns, esta foi de ir ás lágrimas, agora que escrevo esta mensagem aínda me estou a rir. Continua nem que seja eu o teu unico leitor comentador (mas pouco)
um GRANDE ABRAÇO
CBA(CPNR),
Há mais, mas são tímidos!
Tem de se dar tempo ao tempo.
Ervi
A infância deixa muitas marcas.Ainda bem que a tua alimenta o teu imaginário duma forma tão enriquecedora. Continua!Estás num óptimo caminho.Beijos!
Fiquei siderada. Nunca mais passo pelo campo do MTBA sem me lembrar deste episódio épico. Falta ir à Clementina (passo o termo) para ver (bem visto) a foto heróica. Mendel David, volta a escrever! ;)
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